por Nildo Viana
A relação entre super-herói e “ideologia” (axiologia). Muitos já denunciaram o caráter “ideológico” dos super-heróis. Os nazistas, por exemplo, afirmaram que “o Super-Homem é judeu”. Sem dúvida, a era da super-aventura surge no período que antecede a Segunda Guerra Mundial. A necessidade de heróis de carne e osso para sacrificar sua vida na guerra criou a necessidade da fantasia dos super-heróis. O Super-Homem surgiu neste contexto e a afirmação dos nazistas é correta em um certo sentido: o Super-Homem não é judeu no sentido correto do termo, já que ele não possui religião (e nem no sentido nazista e ideológico do termo, já que o Super-Homem não é um ser humano, não poderia ser da “raça” dos judeus) mas é “judeu” no sentido de que realmente ele é inimigo dos nazistas e defensor dos Estados Unidos, devido ao fato dele simbolizar o “homem livre” norte-americano. Desta forma, ele assume a característica comum de todos os “inimigos imaginários” criados pelos nazistas, assumindo a forma de mais um “conspirador judeu”.
O caso do Capitão América é ainda mais esclarecedor. A sua origem, na ficção, ocorre durante a Segunda Guerra Mundial. Steve Rogers era um soldado que foi exposto a uma experiência científica que pretendia criar super-soldados norte-americanos para combater os seus inimigos na Segunda Guerra Mundial. Um soro foi criado para fornecer uma força sobre-humana aos soldados e a experiência com Steve Rogers apresentou os resultados esperados. O super-herói foi reforçado por um uniforme – que é inspirado na bandeira dos Estados Unidos – e um escudo poderoso. Ele foi responsável por inúmeras vitórias do exército norte-americano. Por fim, ele caiu numa geleira e ficou congelado por décadas, até que, por acaso, Namor, O Príncipe Submarino, em um momento de irritação com os seres humanos, joga para longe uma imensa geleira e esta derrete libertando o Capitão América, que passa a atuar em nossa época.
O Homem de Ferro também surgiu num contexto de guerra – a guerra do Vietnã – e foi no contexto desta guerra que Tony Stark foi obrigado a criar a armadura do super-herói, mais tarde alterada para uma cor e forma diferente. O seu caráter axiológico se encontra também na atividade enquanto indivíduo comum: “Tony passa a ser proprietário de um poderoso complexo industrial onde aperfeiçoa e constrói armas e materiais para guerra, em defesa do mundo capitalista”.
Mas, sem dúvida, a origem, o nome, a finalidade, a ação, as ligações com o poder oficial e o uniforme do Capitão América fazem dele o mais axiológico dos super-heróis existentes. A própria personalidade do Capitão América, marcada pelo “espírito de liderança” e “bom senso”, é expressão da axiologia norte-americana segundo a qual os Estados Unidos tem o papel de “líder mundial”. As histórias antigas do Capitão América durante a Segunda Guerra Mundial são extremamente axiológicas, e contam não só com a figura de Hitler e vilões poderosos (Caveira, Capitão Nemo, etc.) como aliados de confiança (Buck, O Patriota, Tocha Humana Original, Namor, etc.) como também aliados “duvidosos” na luta contra o nazismo, tal como o super-herói russo Guardião Vermelho, que até aparece conversando com outro ditador famoso da época, Stálin. Foi nesta mesma época que surgiu o herói Tio Sam, desenhado pela primeira vez pelo renomado Will Eisner e que fornece uma idéia do clima da época, pois o seu uniforme e nome, assim como os do Capitão América, já diz tudo.
Muitos heróis e super-heróis foram acusados de serem axiológicos (“ideológicos”) devido ao racismo que se vê em alguns deles e isto reflete, em alguns casos, a verdade. Estes e outros aspectos axiológicos podem ser encontrados em inúmeros super-heróis.
O gênero da super-aventura é acusado de ser “ideológico” (axiológico) por outros motivos, tais como o “anonimato social” (identidade secreta), o “exemplo social” do
super-herói, a imagem da sociedade como não sendo dividida em classes sociais, “mistificação do arsenal nuclear”, caráter atemporal das histórias.
Entretanto, consideramos que reside aí alguns exageros. O anonimato social ou identidade secreta (que, aliás, ao contrário do que pensa este autor, acompanha a maioria mas não todos os super-heróis), segundo o antropólogo Luís Fernando Baêta Neves, serve para demonstrar “a possibilidade de uma continuidade entre a vida quotidiana de qualquer indivíduo (de qualquer leitor, portanto) e a vida maravilhosa e plena de realização, de poder e de notoriedade de um herói sacralizado”. Desta forma, há um ocultamento da personalidade civil que se expressa no exercício de uma “profissão corriqueira”. Os super-heróis trabalham como qualquer cidadão (Baêta Neves cita Batman como uma exceção e se esquece do Homem de Ferro, que também é um milionário), mas não usam seus super-poderes para se manterem financeiramente. Por qual razão? Por dois motivos, segundo este antropólogo: a) se fizesse isso estaria rompendo com a axiologia que apresenta o trabalho como “dignificante e enaltecedor”, que é aquele que é realizado dentro da ordem social e das normas legais; b) a grande ação heróica aparece como “gratuita” e como “obrigação” de todos, servindo como “exemplo social”. Desta forma, tal aspecto da vida do super-herói se apresenta como axiológica e conservadora, pois apresenta uma falsa consciência da realidade e faz apologia da sociedade e dos valores existentes.
Esta visão apresenta alguns problemas. O “anonimato social” (identidade secreta) tem sua razão de ser na própria estrutura do gênero da super-aventura (e também dos heróis comuns) que é uma extensão da sociedade capitalista. Qual é a razão da identidade secreta? Em primeiro lugar, para proteger pessoas próximas do super-herói, que podem ser vítimas de seus inimigos. Os inimigos existem devido a luta pelo poder, a criminalidade, que são geradas pela desigualdade (social). Tendo-se em vista a existência dos super-vilões (quase que totalmente ausentes na análise de Baêta Neves) e a possibilidade de vingança, seqüestro, etc., nada é mais natural e necessário – numa sociedade caracterizada pela desigualdade e que por isso necessita de super-heróis – do que a identidade secreta. Em segundo lugar, existem super-heróis que estão bastante próximos do poder (Batman e Robin, Capitão América, etc.) mas a maioria possui uma relação ambígua com o poder. Basta citar os exemplos do Homem-Aranha e do Hulk para ver isto. De onde vem esta ambigüidade? Vem do fato de que a idéia de justiça e a ação do super-herói nem sempre está de acordo com a justiça oficial. Esta contradição entre a justiça oficial e a justiça do super-herói aponta para um questionamento da ordem jurídica-institucional e isto vai contra a argumentação de Baêta Neves.
O fato do super-herói trabalhar como qualquer cidadão não é tão genérico assim, pois, além dos capitalistas (Batman, Homem de Ferro) existem aqueles que simplesmente não trabalham (Namor, Hulk, Visão, Surfista Prateado, etc.). Além disso, a profissão exercida geralmente não é de tempo integral, pois isto dificultaria a ação do super-herói, tal como a de jornalista (Super-Homem, Homem-Aranha), advogado (Demolidor), médico (Thor), etc., ou seja, são free-lance ou profissionais liberais. Há também casos onde os super-heróis usam seus poderes para ganhar dinheiro: o jornalista Peter Parker
(Homem-Aranha) sempre usa suas habilidades para tirar fotografias para vender para o jornal O Clarim; a principal habilidade natural de Tony Stark (Homem de Ferro) é a intelectual, que ele utiliza como empresário, mas, mais importante que isso, o Homem de Ferro se apresenta socialmente como guarda-costas de Tony Stark (ou seja, de si mesmo em sua identidade de homem comum) e de suas empresas, o que significa que é um super-herói “por profissão”. Por fim, o fato da ação heróica ser “gratuita” e ser vista como “obrigação” não é, em si mesma, conservadora ou axiológica, pois num mundo onde tudo foi mercantilizado e o trabalho deve ser retribuído com dinheiro, este tipo de atividade “desinteressada” (no sentido de interesse pessoal egoísta) apresenta, na verdade, uma visão alternativa do trabalho. Daí seu “exemplo social” não ser problemático nem axiológico.
A afirmação de que a super-aventura transmite uma visão da sociedade como se ela não fosse dividida em classes sociais é questionável. Sem dúvida, a super-aventura não focaliza a questão social e nem os conflitos sociais mas nem por isso se pode dizer que ela apresenta uma visão da sociedade como destituída de divisão social. A própria existência de criminosos, de super-vilões, as causas das origens de alguns super-heróis e super-vilões apontam para a existência de conflitos sociais. O Homem-Aranha, por exemplo, após adquirir seus poderes os utiliza para ganhar dinheiro e é somente quando um familiar seu é assassinado por um criminoso é que ele resolve combater a criminalidade. Aí está presente a manifestação aparente de um conflito social mas o desenvolvimento das histórias acaba apresentando outros elementos para se observar as origens sociais da criminalidade e, por conseguinte, a visão das injustiças sociais.
Mas aqui aparece realmente uma visão axiológica da sociedade não tanto pelo fato de que a divisão social não é enfatizada e sim pela própria característica do heroísmo: o individualismo. As histórias dos super-heróis são histórias de indivíduos extraordinários e nunca de grupos sociais, tal como se vê na historiografia tradicional, que se caracteriza por retratar a história dos “grandes homens” e não a dos grupos sociais. Além do individualismo se revela aí um “desenraizamento social” do super-herói. Quando este desenraizamento se rompe, tal como no caso do Capitão América, o super-herói se vê forçado a assumir uma posição e, portanto, ficar ao lado de um dos grupos sociais existentes, que geralmente são os grupos dominantes e isto reforça o seu caráter axiológico. Jacques Marny colocou que a evolução interior dos heróis (e dos super-heróis, diríamos nós) no decorrer dos anos apresenta a tendência para se adaptar às normas sociais. Segundo ele:
“A tendência que se verifica na maior parte dos casos é para um alinhamento segundo as normas sociais. No princípio duma série, o herói é o homem marginal, o franco-atirador da ordem e da justiça. Mas há um dado momento em que colabora com as forças da ordem organizadas, tais como o exército e a polícia do seu país. Foi o que aconteceu com Tarzan, Flash Gordon, Superman, Terry, o Fantasma e muitos outros. Contudo, temos de ter em conta que esta colaboração episódica foi devida, na maior parte das vezes, as circunstâncias históricas, concretamente a última guerra mundial: o
herói mobilizou-se espontaneamente, visto que a luta contra as forças do mal requeria a união sagrada”.
Embora existam exceções (tal como Batman, que está sempre do lado da polícia, ouseja, do poder), é o momento histórico que faz com que o super-herói reencontre suas raízes sociais. Isto, no caso dos heróis (e aqui distinguimos herói de super-herói), é diferente, pois as suas características humanas extraordinárias mas não sobre-humanas fazem dele um ser enraizado socialmente e é por isso que se pode encontrar um herói de “esquerda” (tal como Robin Hood e Zorro, um lutando contra o despotismo feudal e outro contra a colonização espanhola) muito mais facilmente que um super-herói de “esquerda”.
A “mistificação do arsenal nuclear” é apontada por Baêta Neves como mais um aspecto axiológico da super-aventura:
“Quando se dá a atribuição de super-poderes por acidente e/ou experiência com arma altamente desenvolvida, ocorre, também, a mistificação e fetichização do arsenal nuclear. Isto se dá porque este é valorado de modo absoluto quanto a seu poder e quanto à irreversibilidade dos efeito que produz. Do lado do caráter de fetiche do instrumento nuclear pode-se ler, também, uma crítica liberal à atuação deste sobre o ser humano, que se deforma ao se expor a ele. Assim, dentro de uma posição tecnocrática dominante, aparece uma palavra de crítica que visa aplacar e não destruir a vigência da ideologia tecnocrática, mitificadora da técnica e da ciência”.
Existe na super-aventura, sem dúvida, uma visão ambígua da ciência (no que se refere às ciências naturais). Basta ver os casos de Hulk, X-Man, o Quarteto Fantástico, etc., para se compreender isto. O Hulk e o Coisa (membro do Quarteto Fantástico) são exemplos de uma crítica dos efeitos da ciência: a deformação do corpo humano. Neste caso se vê a contradição entre um efeito estético indesejável (ambos se transformam em figuras monstruosas do tipo Frankstein, que pode ser considerado o modelo seguido e o tema clássico da simbolização artística dos monstros que a ciência pode criar) e a potência adquirida. Estes dois super-heróis simbolizam a ambigüidade do desenvolvimento científico e que o “avanço” provocado por ela (domínio sobre a natureza e a sociedade) traz em si aspectos indesejáveis (a feiúra, mas que no caso pode ser considerado um símbolo da desumanização e do sentimento de culpa que acompanha a ciência, o que leva o indivíduo a se sentir “feio”). Mas, a nosso ver, o que a super-aventura faz não é uma crítica liberal à ciência e sim uma reprodução do caráter contraditório da ciência, que, ao mesmo tempo, realiza progresso e retrocesso, desenvolve o controle e o descontrole sobre o meio ambiente onde vive a humanidade (transformando-o e destruindo-o), melhora e piora a qualidade de vida e assim por diante.
A última questão colocada por Baêta Neves é o caráter atemporal da super-aventura. Os super-heróis estão fora da história, pois não vivem eventos em sua vida que se desenvolvem cronologicamente. Geralmente não se formam, não se casam, não tem filhos, etc. O mesmo ocorre com a sociedade onde eles vivem. Em primeiro lugar, é preciso colocar que existem muitas exceções e que recentemente isto começou a mudar, basta citar o casamento do Homem-Aranha como exemplo. Em segundo lugar, a estrutura própria da super-aventura dificulta o desenvolvimento de certos acontecimentos, pois casamento, filhos, etc., criam obstáculos para a ação do super-herói (tal como o trabalho em tempo integral). Em terceiro lugar, se o super-herói se desenvolvesse normalmente como um indivíduo comum ele seria muito mais axiológico do que já é. Em quarto lugar, se a sociedade se transformasse radicalmente, acabando com as desigualdades sociais e por conseguinte com a razão de ser da criminalidade e dos super-vilões, então acabaria a razão de ser do super-herói. A super-aventura possui uma temporalidade que é marcada pela seqüência sucessiva de aventuras, onde o passado não pode mais voltar mas explica o motivo de muitas ações presentes. Isto é axiológico? Ora, se imaginarmos um super-herói revolucionário que interfere nas relações sociais buscando a transformação social, a mesma coisa ocorreria. Se a desigualdade acabasse, o super-herói também acabaria. Isto é próprio da estrutura da super-aventura.
Mas uma análise do mundo dos super-heróis deve também distinguir entre os “mundos” povoados por diferentes super-heróis, tal como o mundo Marvel – da Marvel Comics, criadora do Homem-Aranha, Os Inumanos, Hércules, Magneto, Demolidor, Hulk, etc. –, o mundo Detective Comics (conhecida pela sigla DC) – criadora do Super-Homem, Flash, Lanterna Verde, Homem-Borracha, Batman e outros. Estas são as duas mais poderosas fábricas de super-heróis. A DC Comics produz super-heróis e histórias não só mais simples como também mais axiológicas. A recém-criada Image (fundada por ex-desenhistas e roteiristas da Marvel) vem ganhando espaço e competindo com ambas com sua safra de super-heróis, cujo mais famoso é Spawn, que se transportou recentemente para as telas do cinema (Spawn, O Soldado do Inferno), mas também apresenta outros como Dragon, Hitchblade, Angela, etc. Esta nova fábrica de super-heróis se caracteriza pela alta qualidade do desenho e pela pobreza dos roteiros, além de possuir um caráter muito mais axiológico que as outras duas (para se ter uma idéia, a maioria dos seus super-heróis trabalham para a polícia e suas histórias são recheadas de anticomunismo grosseiro – o que não deixa de ser estranho, tendo em vista que ela surgiu nos anos 90 e se comporta como se o marcartismo ainda estivesse em moda e a URSS existisse e fosse ameaça — e pela expressão fascista “comuna” para se referir aos “comunistas”). Também poderíamos citar os fracassados super-heróis brasileiros, tais como Fantastic Man, Raio Negro, Mylar, Fantasma Negro, Capitão Atlas, Capitão Estrela, Mistyko, Hydroman, etc.
A sua estrutura, então, é que é conservadora? Julgamos que não, pois a estrutura da super-aventura reproduz a sociedade capitalista contemporânea e somente surgiu devido as condições sociais originadas dela. Mas a permanência da estrutura da super-aventura (e da própria super-aventura, o que é a mesma coisa) é resultado das contradições da própria sociedade contemporânea e o conservadorismo seria a ilusão de que não há mais contradições sociais e que, por isso, não há mais necessidade de super-heróis e super-aventuras.
Consideramos que a raiz dos equívocos de Baêta Neves se encontra no fato dele não ser um leitor de histórias em quadrinhos. Ele mesmo reconhece que sua análise foi baseada no Pequeno Dicionário dos Super-Heróis, artigo publicado na Revista Vozes, de Moacir Cirne, um especialista em semiologia dos quadrinhos. Fundamentar-se em um texto desta natureza sem ir à fonte é questionável, pois uma análise não pode se basear só em descrições estáticas retiradas de um dicionário, pois deve também ter acesso ao movimento vivo da super-aventura. Neste caso, uma tal análise só poderia provocar equívocos.
Por último, podemos dizer que a preocupação com o caráter axiológico da super-aventura e das histórias em quadrinhos em geral é legítima quando nos dedicamos a pesquisar tal fenômeno social; porém, todas as formas de manifestações culturais que são de ampla circulação (e que são transmitidas através de empresas oligopolistas de meios de comunicação de massas) são axiológicas e por isso a análise da super-aventura deve ir além da constatação óbvia do seu caráter axiológico. Deve desvendar seu processo de formação, suas características e o que mais existe no seu interior. Assim, a presente análise é incompleta. Aqui parece fundamental compreender a relação entre o mundo dos super-heróis e o inconsciente coletivo, tal como o definimos em outro lugar, de forma diferenciada de Jung. Iremos apresentar tal relação em outro texto, complementar a este. Aqui fica apenas a análise do caráter axiológico do mundo dos super-heróis, um mundo imaginário que manifesta os valores dos seus criadores, que são os valores dominantes em nossa sociedade.
Abraços...